Uma fábula sem mágica, mas com coração
A Mais Preciosa das Cargas, novo trabalho de Michel Hazanavicius, chega aos cinemas brasileiros com uma proposta sensível e arriscada: tratar do Holocausto em forma de animação. Inspirado no livro homônimo de Jean-Claude Grumberg, o filme adota um tom de fábula, embora se esforce, logo de início, para negar esse rótulo.
Ambientada na Segunda Guerra Mundial, a trama acompanha um casal de lenhadores que vive isolado em uma floresta gelada e desolada. Após terem perdido seus filhos, cada um lidava com a dor de uma maneira: ele com o alívio de ter menos bocas famintas para alimentar, e ela com a esperança incansável de ser mãe novamente. Quando a esposa ouve o choro de um bebê vindo de um trem — que transportava judeus para campos de extermínio —, ela toma uma decisão que mudará suas vidas: resgatar e criar aquela criança.
Sem usar palavras diretas como “judeu”, “nazista” ou “Holocausto”, Hazanavicius constrói um universo onde o subtexto fala mais alto. A recusa do marido em aceitar o bebê, fruto de um ódio aprendido, e a persistência da esposa em cuidar dele revelam, com delicadeza, as raízes do preconceito e o poder transformador da empatia.
Em meio à guerra fria entre marido e mulher, a criança conquista o coração do lenhador bruto e traz alegria e calor para a família. Até que, em dado momento, durante uma conversa com seus colegas lenhadores, o marido se posiciona contra as ideologias impostas aos “sem coração” — nome dado aos judeus na animação. Foi então que seus camaradas começaram a desconfiar da parentalidade do lenhador em relação à pequena carga, e esse ódio resultou na morte do lenhador, que sacrificou a própria vida para salvar a esposa e a criança.
Sem ter para onde ir, a esposa pede abrigo ao senhor que fornecia leite para alimentar a criança. E, mais uma vez, a pequena carga encontra proteção para sobreviver. O homem os recebe, cria e alimenta a senhora e a criança por anos. Até que, novamente, o ódio bate à porta deles, e a senhora e a criança se veem sozinhas, sem ter onde ficar em segurança. Assim, partem da floresta.
Em paralelo, é contada a história da família biológica da pequena carga milagrosa, que estava amontoada entre milhares de judeus — os chamados “sem coração” na narrativa. Em um momento de desespero e amor profundo, o pai vê-se sem saída, a não ser tentar salvar um de seus dois filhos. Avistando uma mulher em meio à nevasca, joga a criança pela janela do trem, na esperança de que ela seja encontrada e salva. No final da linha, ocorre a inevitável separação entre a esposa e o outro filho. Os horrores vividos pelo pai são mostrados com profunda tristeza e sofrimento — suas atividades insalubres e obrigatórias, e como o tempo e a miséria impactaram sua vida. Até que a guerra chega ao fim, e ele pode procurar por sua família. Ao se ver sozinho na saída do campo, parte em busca da criança, esperançoso de encontrá-la viva.
As duas histórias se encontram quando o homem é resgatado e direcionado a um abrigo que acolhia pessoas debilitadas pela guerra. Lá, encontra uma senhora com uma criança muito familiar. Instintivamente, tenta se aproximar para ver e interagir, mas a criança, assustada, se esconde. O homem se entristece, mas ao ver seu reflexo no vidro, percebe na própria pele as marcas dos anos de sofrimento, miséria e fome. Então, se afasta da criança, para não assustá-la, deixando-a seguir a vida que conseguiu construir longe dele.
Após um salto temporal na narrativa, o homem — agora bem-sucedido — encontra uma revista cuja capa exibe uma jovem de 20 anos contando seu relato de sobrevivência e como uma família pobre a acolheu em meio à guerra. E é assim que a história se encerra.
Visualmente, o filme é belo e simbólico. As paisagens geladas, com tons azulados e sombras profundas, refletem a frieza e a opressão do contexto histórico. Na segunda metade, a chegada da primavera representa não apenas a mudança das estações, mas a possibilidade de redenção. É uma animação que se apoia mais em imagens do que em movimento fluido, o que reforça seu caráter autoral. A animação em si é grosseira, mas muito bem segmentada: momentos de esperança ganham tons mais claros e linhas finas; os de sofrimento, tons escuros, linhas grossas e sombreados. Em alguns momentos, as cenas são difíceis de visualizar, tamanha a escuridão da ambientação.
Apesar da força de sua proposta, o filme tropeça no ritmo. Com menos de 90 minutos, sua conclusão soa apressada e anticlimática, deixando pontas soltas e diminuindo o impacto de algumas revelações. Ainda assim, os momentos mais emocionantes — especialmente os que envolvem o contraste entre o horror histórico e a ternura cotidiana — permanecem ressonantes.
A Mais Preciosa das Cargas talvez não alcance todo o seu potencial como fábula universal, mas oferece uma narrativa emocional e poderosa sobre bondade em tempos de barbárie. É um lembrete de que, mesmo no cenário mais sombrio da história, ainda é possível encontrar faíscas de humanidade.
*Título assistido em Cabine de Imprensa Virtual promovida pela Paris Filmes.
Divulgação/ Paris Filmes
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal C+
Colaboração: Muller Diego